sábado, 18 de agosto de 2012

Ridiculamente envolvida por essa droga de transferência.
Tão encantadoramente fundamental e satisfatoriamente eficiente, ela enlaça até mesmo os mais seguros... quanto mais uma histérica de carteirinha...
Ela transborda pelos pensamentos e sensações... Invade os sonhos...
Ela transgride todas as leis e normas de boas maneiras...
Ela cheira a desejo, excitação e, claro, não-realização.
Esse é o segredo dela. E maldição.

Ela te envolve...te preenche.
Ela te satisfaz.

Tudo isso pra depois não passar de pura fantasia: tão linda, a fantasia é construída, edificada...tão fortemente que parece ser real - pra você. Pra depois ser desfeita, aniquilada. Da pior maneira possível... te constrangendo. Porque você precisa falar dela, ali...cara-a-cara. Você precisa enfrentá-la.

Ela te desnuda, te deixa em carne viva. Pra depois ferir mais. 
Pra descobrir segredos. Pra te fazer de bobo... pra te fazer crescer!

Essa maldita transferência. Tão fácil de ser enganada e iludida por ela...
Não adianta ler livros...ela se mostra mesmo que você esteja preparada pra rejeitá-la.
Mas não se pode fazer isso... 
Ela é ardilosa, traiçoeira.
E vai te alcançar. 

Isso é estar em análise!

domingo, 5 de agosto de 2012

Luis Fernando Veríssimo


              Tudo sobre Sandrinha

"O desperdício. Entende? O desperdício." Era o que ele dizia depois que a Sandrinha foi embora. "Eu sei tudo sobre a Sandrinha. Conheço cada sinal do seu corpo, cada pêlo, cada marca. Alguém sabia que ela tinha uma cicatriz pequenininha aqui, em baixo do queixo? Pois é, não aparecia, mas eu sabia. Ela tinha uma pintinha numa dobrinha entre a nádega e a coxa que, aposto, nem a mãe conhecia. Nem ginecologista, ninguém. E o dedinho do pé virado para dentro, quase em baixo do outro? Era uma deformação, ninguém desconfiava. E eu sabia. E, agora, o que eu faço com tudo o que sei da Sandrinha?"

Contou que passava horas olhando a Sandrinha dormir. Barriga para baixo, cara enterrada no travesseiro, a boca às vezes aberta. Mas não roncava. Às vezes ria. "Um dia ela riu, acordou, me viu olhando para ela e disse 'Você, hem?', depois dormiu de novo. Acho que, no sonho, eu tinha feito ela rir. Depois ela não se lembrava do sonho, disse que eu tinha inventado. O que eu faço com isto?" De que lhe adianta saber como a Sandrinha raspava a manteiga, cantava uma música no chuveiro que ela jurava que existia, "Olará-olarê, tou de bronca com você", que ninguém nunca tinha ouvido? E fechava um olho sempre que não gostava de alguma coisa, de uma sobremesa ou de uma opinião?

Ele podia escrever um livro, "Tudo sobre Sandrinha". Mas quem ia comprar? Não seria sobre ninguém importante. Não seria a biografia, com revelações surpreendentes, de uma figura histórica ou controvertida, só tudo o que ele sabia sobre uma moça chamada Sandrinha, que o deixara. O produto de anos de observação. 

Sandrinha na cama, Sandrinha no banheiro, Sandrinha na cozinha, Sandrinha correndo do seu jeito particular. 
Nenhum interesse para a posteridade. Dez anos de estudos postos fora.

"Estudei a Sandrinha em todas as situações, em todos os ambientes, em todos os elementos possíveis. Sandrinha na praia. Sandrinha enrolada num cobertor, comendo iogurte com fruta e vendo televisão. Sandrinha suada. Sandrinha arrepiada. O estranho efeito de relâmpagos e trovoadas nos cabelinhos da nuca de Sandrinha. Querem os cheiros da Sandrinha? Tenho todos catalogados na memória. Sandrinha gripada. Sandrinha distraída. Sandrinha contrariada, eufórica, rabugenta, com cólica e sem cólica. Sandrinha roendo unha ou discutindo o Kubrick. Não havia nada sobre a Sandrinha que eu não sabia. Toda esta erudição sem serventia."

"O desperdício. Não posso oferecer tudo que sei sobre a Sandrinha para um inimigo. Seus momentos de maior vulnerabilidade, ouvindo o Chico ou errando o suflê. A Sandrinha, que eu saiba, não tem inimigos. Certamente nenhuma potência estrangeira. Não posso oferecer meus conhecimentos da Sandrinha para a Ciência. Se ela ainda fosse um fóssil que eu desenterrei e passei dez anos examinando e cujas características revolucionariam todas as teorias estabelecidas sobre o desenvolvimento humano. Se a sua maneira de raspar a manteiga fosse espantar o mundo... Mas não. Inventei uma ciência esotérica, de um praticante e de um interessado só. Não posso dar cursos, publicar teses, formar discípulos. Participar de congressos sobre a Sandrinha. Sou doutor em nada. Doutor em saudade. Entende? Desperdicei dez anos numa especialização inútil."

Não adianta tentar consolá-lo. Convencê-lo a esquecer a Sandrinha, se dedicar a outras. Ele diz que não está preparado para outras. Toda a sua formação é em Sandrinha.


Com outra - diz ele - se sentiria como essas pessoas com diploma em física nuclear ou engenharia electrónica que acabam trabalhando de garçom.


Luís Fernando Veríssimo. 
(Livro: Em algum lugar do paraíso)







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